O complexo de Harry Potter
Caderno Mais. Folha de São Paulo. 30/10/2005
O sociólogo alemão Robert Kurz critica o neo-utopismo tecnológico e a noção de "trabalho imaterial" desenvolvidos por Antonio Negri e Michael Hardt em seu livro "Multidão", que está saindo no Brasil
ROBERT KURZ
COLUNISTA DA FOLHA
Um aspecto do êxito mundial de "Harry Potter" consiste talvez no fato de um desejo infantil ser despertado. É que, em tempos de crise, seria sumamente agradável reduzir a pó todos os problemas com uma vara de condão. Os turbo-consumidores dos anos 90, cujo dinheiro infelizmente se esvaiu nesse meio tempo, encontram-se em busca da última palavra em fantasia ideológica, com a qual podem escapulir, sem mais esforços de emancipação, da realidade agora arriscada.
Depois da miséria por que passou a magia negra especulativa, no lugar do "capital fictício" entra em cena agora uma espécie de "trabalho fictício", cujos protagonistas imaginam também estar além de todas as condições materiais e de todos os conteúdos qualitativos.
O conceito de "trabalho imaterial" criado por Antonio Negri e Michael Hardt avança agora [com o lançamento de "Multidão", ed. Record, 532 págs., R$ 62,90, cujo lançamento internacional foi capa do Mais! em 1º/8/2004] a passo firme para se tornar a rubrica desse novo produtivismo virtual. O antigo paradigma industrial deve ser substituído pelos modelos da tecnologia da informação e da comunicação, da analítica simbólica, das mídias e assim por diante. Hardt e Negri tratam de substituir com destreza a antiga classe trabalhadora (industrial) que se desmancha pela assim chamada "multidão", uma massa pós-moderna difusa, cuja base forma supostamente o "trabalho imaterial".
Considerado superficialmente, nesse construto parece estar em jogo uma versão "Harry Potter" desmaterializada do empoeirado conceito marxista de "luta de classes". Mas essa idéia passa ao largo, em todos os aspectos, da realidade global.
Em primeiro lugar, nenhum trabalho é "imaterial", tampouco o trabalho nos setores da informação e do "conhecimento"; sempre se trata da combustão de energia humana. Imaterial é a maior parte dos produtos desse trabalho, mas justamente por isso esses setores não podem sustentar a reprodução social, cuja base permanece sendo o "processo de metabolismo com a natureza" (Marx) e, portanto, é material.
Em segundo lugar, pelo mesmo motivo, as pessoas ocupadas comercialmente com o manejo de símbolos e informação de maneira alguma formam uma "multidão". Ao contrário, são uma pequena minoria.
Isso se deve ao fato de que a microeletrônica, que tornou supérfluo o trabalho industrial anterior, não produz nenhum novo trabalho em massa. Atrás dos modelos de processamento de informação, de comunicação e de analítica simbólica não estão mais engatados milhões de trabalhos secundários de acabamento como antes nas indústrias fordistas, mas sim processos tecnológicos automáticos, máquinas de comunicação e mídias que só necessitam dos seres humanos a título de consumidores.
Em terceiro lugar, finalmente, a retórica da luta de classes também é vazia sobre essa base. Pois o caráter da "multidão" de Hardt e Negri não é determinado pela relação de dependência do trabalho assalariado, mas antes pela independência supostamente nova nos setores do "conhecimento", da informação e em suas redes. Nesse sentido, eles condenam o caráter "parasitário" dos conglomerados financeiros, que, como vampiros, pecariam contra a força criativa da "multidão".
Aqui se torna claro que, na realidade, a antiga luta de classes do trabalho assalariado industrial é substituída por uma visão neopequeno-burguesa. Hardt e Negri pretendem prosseguir a produção de mercadorias que se tornou obsoleta, eternizando-a com o expediente de uma formação de redes independentes que se instauram entre pequenos grupos informacionais da "autovalorização".
Não admira que tal conceito encontre tão grande acolhida entre os náufragos da pós-modernidade. O cerne social dessa ideologia é formado de fato não por uma nova "classe operária" assalariada, mas por pseudo-autônomos, pelas vítimas da "terceirização" e novos empresários da miséria nos âmbitos da produção "high tech", das mídias e do processamento de informação, abarcando os acadêmicos e os professores depravados das instituições privatizadas de ensino, que, como "subempresários" intelectuais, precisam pagar por conta própria seu seguro social.
Essa "classe", se se quer chamá-la assim, elaborou seu grandioso fracasso no capitalismo-cassino meramente de forma compensatória, tachando o grande capital financeiro de mentiroso e enganador. Eis a matriz classista de uma crítica pequeno-burguesa do capitalismo; aliás, não isenta de tons anti-semitas. Já tem algo de penoso a maneira como o ser social irrefletido dos pequenos e decadentes produtores de "conhecimento" e informação reaparece aqui como consciência ideológica.
A superação do dinheiro
O conceito de "trabalho imaterial" se sedimentou também no novo utopismo do movimento internacional do software livre. A "autovalorização" dos pequenos produtores pós-modernos de mercadorias é vinculada aqui à idéia de uma "superação do dinheiro", como a que foi virulenta também nas utopias do século 19.
Mas essa crítica do dinheiro não se refere, como em Marx, ao contexto total da reprodução capitalista. Ela se reporta apenas à função mediadora do dinheiro no processo de circulação. Deve se realizar um "dar e tomar" sem a intervenção do dinheiro, enquanto a lógica subjacente do "riqueza abstrata" (Marx) permanece fora do alcance da crítica.
Esse neo-utopismo crê ter encontrado seu eldorado no "trabalho imaterial" da produção de informação. Sobretudo a internet é entendida como o campo central para a realização dessa idéia. Ora, a internet é, sem dúvida nenhuma, uma criação tecnológica que conduz aos limites internos do capitalismo. Revelou-se impossível fazer desse meio de comunicação universal o terreno de uma nova era de acumulação do capital. Justamente por isso fracassou, como se sabe, a "nova economia".
Ou seja, o capitalismo não pode haurir mais-valia real do processamento de informação. Por esse motivo, ele precisa tentar conferir aos produtos imateriais preços na forma de dinheiro por meio de licenças jurídicas formais. É a simulação do lucro na esfera da pura circulação, em total semelhança com os "produtos financeiros" do capital fictício.
O movimento batizado de software livre compreende mal essa contradição imanente do desenvolvimento capitalista ao fazer de conta que já haveria aqui um "território livre", distante do dinheiro. Porém a crítica superficial ao enriquecimento por meio de licenças legais para softwares e outros produtos da "informação" permanece superficial porque não toca nas relações sociais de produção.
Um aspecto secundário da crise em um pequeno setor é frisado unilateralmente, e a questão da emancipação é afunilada logo em seguida. A sociedade deve ser transformada não por um grande movimento contrário às injunções da administração da crise, mas por um "modelo" alternativo tirado da esfera virtual, o qual deveria ser apenas estendido. O software livre deve convalescer o mundo. De novo se trata de inflar em universalidade um pretenso mundo-modelo.
Mas essa utopia fracassa justamente por conta do caráter de fato imaterial dos conteúdos que são transportados via internet. Se o aspecto material do "trabalho abstrato" não pode ser apresentado nos fluxos de informação da internet, então menos ainda os objetos reais do carecimento em sua maior parte.
Não se pode "baixar" nenhum pão, nenhum vinho e nenhuma calça, para não falar de aço laminado ou materiais de construção; e nem sequer um livro, como deve saber qualquer um que tenha tentado ler na tela uma obra literária maior ou imprimi-la em uma enxurrada de papéis. Só por isso não se pode tirar da internet um "modelo" de reprodução social que, determinada materialmente em sua maior parte, se situe além do sistema produtor de mercadorias.
Os neo-utopistas querem se iludir sobre esses limites de sua idéia unilateral e reducionista, declarando que o problema é meramente provisório e pode ser resolvido pelo desenvolvimento tecnológico futuro.
Máquina universal
O engenheiro britânico Adrian Bowyer (Universidade de Bath) quer construir, nesse sentido, uma "máquina universal" que, à diferença dos objetos de computador, reproduza não mais de forma somente virtual mas também material. Essa "máquina "rapid prototyping'" (RepRap) no tamanho de uma geladeira deve replicar-se a si mesma e, além disso, produzir praticamente qualquer outro objeto.
Ela deve funcionar segundo o princípio das máquinas de copiar, como as que são empregadas no design industrial para modelar protótipos. Factualmente, trata-se de impressores que podem produzir objetos tridimensionais a partir de amido de milho, plástico ou ligas que derretem a baixas temperaturas.
Os alucinados da internet esperam que essa "máquina universal" possa produzir tudo após uma "evolução darwinista" de sua auto-replicação, desde câmera digital até pãezinhos. É pintado um futuro em que as pessoas poderão "baixar" comodamente todos os bens imagináveis em geral. Não se trata de uma "máquina de Marx", como se afirma, mas antes de uma máquina de Harry Potter.
Essa idéia grotesca remete ao caráter tecnicista redutor do construto inteiro. Não está em jogo aqui obter relações sociais diferentes e uma outra relação com a natureza que apontem para além do sistema produtor de mercadorias, a fim de dar conta da lógica específica dos diversos âmbitos da vida.
Bem ao contrário, a reprodução social total deve ser subsumida ainda mais sob uma única "lógica funcional". O "trabalho abstrato", com seu alcance destrutivo, negativo e universalista sobre o mundo, não é superado. Ele é prosseguido como figura fantasmagórica de um composto cibernético inteiramente automático.
O herói em questão é o consumidor de mercadorias na qualidade de "verdadeiro ser humano", desembaraçado de todas as condições materiais, o qual reinterpreta seu consumo convertendo-o em produção. Se nas alucinações da esquerda pós-moderna dos anos 90 o consumidor era considerado "dissidente", agora ele deve ser exaltado como "produtor imaterial" dissidente.
Na realidade, a internet é um meio de comunicação de fato universal mas inteiramente restrito à circulação, pressupondo em todos os aspectos a produção feita em outra parte. Mesmo software precisa ser desenvolvido primeiro, antes de poder ser introduzido na circulação midiática.
Se o consumo lúdico de "usuários" pode possibilitar um certo desenvolvimento no caso especial dos programas de computador, o mesmo coletivismo anônimo de produtores consumidores no caso de produtos culturais é uma ilusão. Pois a cultura em sentido amplo não funciona, segundo sua essência, conforme a lógica de "0" e "1". Ela não pode se desenvolver como mera combinação de módulos informacionais.
O déficit dessa idéia se torna particularmente evidente quando o "dar e tomar" sem dinheiro deve ser aplicado, na qualidade de pseudoprodução de software, aos conteúdos artísticos e teóricos. Aliás, menos a expensas dos conglomerados midiáticos do que a expensas do produtores culturais imediatos, que sob condições capitalistas não podem viver sem rendimento monetário. Abstraindo isso, os textos literários e teóricos exigentes só surgem por reflexão e elaboração individual de experiências sociais. A troca com outros e o desenvolvimento não se efetua por "download" e neoconfiguração mecânica.
Se o pensamento emancipador deve consistir justamente em que os indivíduos se entendam apenas como "pontos de contato no intertexto", como se expressa o filósofo alemão Peter Sloterdijk, então a individualidade abstrata do capitalismo não é superada. É somente radicalizada.
"O gesto do downloading", escreve Sloterdijk, significa "libertar-se da injunção de fazer experiência". O filósofo pós-moderno de forma alguma se refere a isso de maneira crítica; para ele esse desenvolvimento deve ser "saudado quase sem restrição". No lugar da idéia marxista de uma "associação de indivíduos livres" aparece em espaço virtual um coletivismo desmaterializado e preso à lógica da circulação. Não é uma resposta à crise social e intelectual do movimento emancipador.
Robert Kurz é sociólogo alemão, autor de "Os Últimos Combates" (Vozes). Escreve regularmente na seção "Autores", do Mais!.
Tradução de Luiz Repa.
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