01 novembro 2005

A derrota dos EUA é política, diz Negri

O filósofo italiano Toni Negri analisa a invasão do Iraque pelos Estados Unidos como uma derrota americana. Em entrevista no revitalizado Hotel Bauen, Negri assegurou uma perspectiva auspiciosa para América Latina e criticou a esquerda tradicional da Europa.

Por Verónica Gago, Página 12
Tradução Fábio Malini

O filósofo e militante italiano Toni Negri está na Argentina pela segunda vez. Antes passou pelo Chile e Brasil. Depois da polêmica mundial das teses de Império (sobre o fim do imperialismo clássico), agora o intelectual está convencido de que a América Latina vive um tempo anômalo, porque deixou de ser o "quintal" dos Estados Unidos. Da crise argentina de 2001 à atual crise brasileira, passando pelo fracassado golpe na Venezuela e as revoltas andinas, Negri percebe um sintoma profundo e continental de mudança na América LAtina, capaz de dar vazão a um multilateralismo que disputa com a pretensão norteamericana de soberania imperial. Em seu diálogo com Página/12 insiste em afirma que a América Latina está mais avançada que a Europa para pensar a relação entre os movimento sociais e os governos na experimentação de um radicalismo democrático.

– Após a intervenção dos EUA no Iraque, as teses de Império possuem atualidade?

- Logo após o lançamento de Império, a crítica ao livro se centrou no papel dos Estados Unidos, na guerra. A crítica sustentava que a política norteamericana se apresentava como política imperialista, logo, as teses de Império sobre a redistribuição de poder em nível global eram falsa. Refutando essa posição, a partir do caso da Guerra do Iraque, a primeira coisa que se há de dizer é que essa guerra não mostrou o renascimento da função imperialista, mas sim, a derrota definitiva do unilateralismo norte americano. E isto não é só por conta da dificuldade que os norteamericanos encontraram em instalar a guerra, mas porque se demonstrou que é absolutamente impossível conduzir o processo de ação política internacional fora de um quadro mundial de acordos que não abarque outros atores e países. A derrota dos EUA não é somente uma derrota no front iraquiano, mas sobretudo uma derrota política devido a sua incapacidade para instalar uma zona política. A guerra do Iraque não implica uma derrota como foi a do Vietnã, devido a resistência dos vietcongs, no contexto da Guerra Fria. A derrota atual dos EUA é por falta de capacidade para construir uma unanimidade em torno de sua operação de guerra. Em um outro campo, o velho direito internacional, que era um clássico direito dos Estados-Nação, ficou completamente deslocado e, além disso, há que se considerar a absoluta incapacidade norteamericana de financiar esta guerra: a crise do pressuposto norteamericano é algo verdadeiramente grave.

– Em outras oportunidades o Sr falou de um "golpe do Estado" no Império. Poderia explicar melhor isto? Como explicaria atualmente a formação de uma estrutura de poder no Império?

Na situação atual, o projeto norteamericano está numa crise profunda. Bush é um pequeno Luis Bonaparte que tenta um golpe de Estado no Império para impôr um comando unilateral sobre a globalização. Isto não só é impossível como extremamente perigosos desde todos os pontos de vista. Além disso, também entrou em crise a capacidade americana de gestão ideológica para desenvolvr políticas econômicas: o neoliberalismo que parecia totalmente vigente até um anos atrás é agora recusado por um ciclo de lutas, o que abre uma situação extremamente complicada e variável. A guerra confirmou que o problema maior é que o Império não sabe para onde se dirige. O que vamos ver será uma nova batalha de quem vai comandar o Império, qual é o regime soberano que vai se determinar. A hipótese que me parece mais plausível hoje é a emergência de um grande conglomerado aristocrático formado pelas grandes potências continentais, tais como China e Índia, e parte da Europa.


– Como o Sr avalia a persistência de uma visão antiimperialista em boa parte da esquerda?

Estou seguro de que as ideologias antiimperialistas das esquerdas tradicionais, que são profudamente conservadoras, são equivocadas, pois funcionam como um espelho que deforma os posicionamentos, ao estilo de Fukuyama e seu fim da história, que é pensada em termos de grandes Nações mais que nestas novas sínteses sobernas. A visão de Huntington, só é um verdadeiro inimigo, porque organiza um discurso para as elites norteamericanas. PEnso, atualmente, para voltar a questão anterior, que é necessário prestar muita atenção no modo em que os movimento sociais condicionam permanentemente as sínteses políticas, os novos modos soberanos. Trata-se sempre de variáveis complexas.

– Como a América latina participa desta nova redefinição da soberania imperial?

Parto de uma idéia básica de que parecer ser a primeira vez que a América Latina no atua como quintal dos Estados Unidos. É muito significativo isto, no sentido da queda da ALCA. Esta é uma modificação importante, principalmente se levarmos em conta a estabiliação desse processo no contexto da presença global do neoliberalismo. Esta novidade, ademais, se transporta para o terreno político precisamente em um momento em que o grande vizinho do Norte está em dificuldade e não tem capacidade de intervir imediatamente. Deste modo, a situação do Brasil, assinalada pela vitória de Lula, produziu uma consolidação de uma força de esquerda e um equilíbrio intercontinental positivo do ponto de vista dos movimentos. Do Uruguay a Venezuela, passando pelas intensas lutas da zona andina, o mínimo que se pode dizer é que estamos diante a uma situação de profunda mudança. Sobre o plano internacional, esses processos se projetam apresentando a América LAtina como um grande potencial continental para participar, sonte o terreno transnacional, da gestão do mercado mundial. Isto, evidentemente, implica em uma verdadeira inovação. É neste sentido que podemos interpretar a importÂncia do desenvolvimento das relações Sul-Sul. É a partir do impacto sobre o terreno global, creio, que devemos valorizar o papel dos governos sulamericanos de esquerda. O que significa então um governo da América Latina pensar em se desvencilhar do FMI?: o fim da dependência é uma possibilidade, uma potencialidade. E essa possibilidade é o que devemos pensar. O problema maior que nos apresenta hoje então é a relação entre movimentos e governos, pois esses últimos estão diante da possibilidade de aprodundar este potencial criativo das novas formas sobernas.

Qual poderia ser a relação entre governos de esquerda e movimentos sociais?

– Antes dizíamos que os governos conviviam com um duplo poder. Ao contrário, hoje se trata de um verdadeiro momento de transformação da soberania e da relação entre governo e movimentos. E isto se projeta de modo claro no nível internacional. Ou seja, torna-se bastante importante quando nos recordamos que a base do Imperio é a guerra. E na América LAtina é de onde se vÊ como estas coisas passam ou não. O que ocorre hoje no Brasil? Seguramente o movimento vai pagar um preço muito alto pela estabilização atual do governo Lula, já que os movimentos organziados sentem uma enorme desilusão. A situação da Argentina parece manter-se em um certo equilíbrio após a crise. E a situação venezuelana é que apresenta o problema de modo caricaturesco, porque a proposta de relação governo e movimentos vem do alto e isto desencadeou uma energia enorme. O certo é que se trata da situação mais radical entre todos os três países, porque pode ser a porta de entrada da guerra como variável por parte dos EUA.

O que o Sr se refere quando fala de um "novo pacto"?

– A questão de um novo pacto é a redefinição de uma aliança estratégica. Contudo o ponto chave é o conteúdo multitudinário deste novo pacto. Vamos pegar um exemplo: a defesa da pequena propriedade no Brasil. Ela ocorre de modo que seja compatível com o desenvolvimento da agricultura, que é de fato um ponto programático do MST. Contextualizado para América Latina, isto implica numa discussão de como pensar um pacto que não insista na reprodução de uma perspectiva keynesiana que já não é mais possível: hoje não se pode discutir um pacto supondo uma dinâmica produtiva dada pela grande indústria. O novo pacto deve se referir à relação entre as organizações sociais e a organização produtiva em termos de cooperação social. Somente a partir disso aparecerá a verdadeira dimensão de um radicalismo democrático de base. O grande erro da esquerda tradicional oportunista é que, se não se falar das formas institucionais e políticas nas quais a grande reforma deverá advir, não se pode falar em mais nada. A questão é o que significa hoje ter força e como consolidá-la. Evidentemente não é através do exército. Este problema está muito presente na Argentina, que é um corpo aberto, ótimo mpara a análise.

— O Sr apoiou o "sim" à Constituição Européria no refereno francês. Como explicar a posição contrário da maioria da esquerda européia?

– Na Europa estamos presenciando a reconstrução da esquerda, como por exemplo a Linkspartei alemã. A esquerda corporativa européia teve sua primeira vitória com o "não" a Constituição Européia na França. Para mim se tratava de impulsionar um debate político sobre a relação que existia entre três coisas: a apresentação da Europa como alternativa necessários aos Estados Unidos, a construção de um espaço europeu aberto a novas dinÂmica e, por último, a consideração da Constituição não como o que forneceria definições positivas, mas sim como uma negatividade aberta às contradições bem interessantes. Isto não foi possível porque os movimentos sociais foram absorvidos por esta esquerda tradicionalista, exceto uma pequena parcela dos movimento que é aberto À questão da imigração. Quando apoiei o "sim", muitos amigos se molestaram (risos). Mas a unidade em torno do "não", sobretudo na França, é a unidade de loucos: socialistas de direita, estalinistas, intelectuais trotskistas e outros que se juntaram com a direita e a ultradireita em nome de um ressentimento pelo fim do Estado e uma siuposta defesa de direitos contra os dos migrantes.

Como analisa o movimento de resistência global?
– Em profunda crise. O que começou em Seattle, seguiu em Gênova e continuou no movimento contra a guerra, declinou brutamente. Disto se nutriu a reconstrução da esquerda tradicional. Mas o interessante é que no interior dessa curva descendente começou uma nova curva, agora, ascedente, protagonizda por lutas sociais de novo tipo, que se dão ao redor fundamentalmente do trabalho precário e da imigração.

O complexo de Harry Potter

Caderno Mais. Folha de São Paulo. 30/10/2005

O sociólogo alemão Robert Kurz critica o neo-utopismo tecnológico e a noção de "trabalho imaterial" desenvolvidos por Antonio Negri e Michael Hardt em seu livro "Multidão", que está saindo no Brasil

ROBERT KURZ
COLUNISTA DA FOLHA

Um aspecto do êxito mundial de "Harry Potter" consiste talvez no fato de um desejo infantil ser despertado. É que, em tempos de crise, seria sumamente agradável reduzir a pó todos os problemas com uma vara de condão. Os turbo-consumidores dos anos 90, cujo dinheiro infelizmente se esvaiu nesse meio tempo, encontram-se em busca da última palavra em fantasia ideológica, com a qual podem escapulir, sem mais esforços de emancipação, da realidade agora arriscada.

Depois da miséria por que passou a magia negra especulativa, no lugar do "capital fictício" entra em cena agora uma espécie de "trabalho fictício", cujos protagonistas imaginam também estar além de todas as condições materiais e de todos os conteúdos qualitativos.

O conceito de "trabalho imaterial" criado por Antonio Negri e Michael Hardt avança agora [com o lançamento de "Multidão", ed. Record, 532 págs., R$ 62,90, cujo lançamento internacional foi capa do Mais! em 1º/8/2004] a passo firme para se tornar a rubrica desse novo produtivismo virtual. O antigo paradigma industrial deve ser substituído pelos modelos da tecnologia da informação e da comunicação, da analítica simbólica, das mídias e assim por diante. Hardt e Negri tratam de substituir com destreza a antiga classe trabalhadora (industrial) que se desmancha pela assim chamada "multidão", uma massa pós-moderna difusa, cuja base forma supostamente o "trabalho imaterial".

Considerado superficialmente, nesse construto parece estar em jogo uma versão "Harry Potter" desmaterializada do empoeirado conceito marxista de "luta de classes". Mas essa idéia passa ao largo, em todos os aspectos, da realidade global.

Em primeiro lugar, nenhum trabalho é "imaterial", tampouco o trabalho nos setores da informação e do "conhecimento"; sempre se trata da combustão de energia humana. Imaterial é a maior parte dos produtos desse trabalho, mas justamente por isso esses setores não podem sustentar a reprodução social, cuja base permanece sendo o "processo de metabolismo com a natureza" (Marx) e, portanto, é material.

Em segundo lugar, pelo mesmo motivo, as pessoas ocupadas comercialmente com o manejo de símbolos e informação de maneira alguma formam uma "multidão". Ao contrário, são uma pequena minoria.

Isso se deve ao fato de que a microeletrônica, que tornou supérfluo o trabalho industrial anterior, não produz nenhum novo trabalho em massa. Atrás dos modelos de processamento de informação, de comunicação e de analítica simbólica não estão mais engatados milhões de trabalhos secundários de acabamento como antes nas indústrias fordistas, mas sim processos tecnológicos automáticos, máquinas de comunicação e mídias que só necessitam dos seres humanos a título de consumidores.

Em terceiro lugar, finalmente, a retórica da luta de classes também é vazia sobre essa base. Pois o caráter da "multidão" de Hardt e Negri não é determinado pela relação de dependência do trabalho assalariado, mas antes pela independência supostamente nova nos setores do "conhecimento", da informação e em suas redes. Nesse sentido, eles condenam o caráter "parasitário" dos conglomerados financeiros, que, como vampiros, pecariam contra a força criativa da "multidão".

Aqui se torna claro que, na realidade, a antiga luta de classes do trabalho assalariado industrial é substituída por uma visão neopequeno-burguesa. Hardt e Negri pretendem prosseguir a produção de mercadorias que se tornou obsoleta, eternizando-a com o expediente de uma formação de redes independentes que se instauram entre pequenos grupos informacionais da "autovalorização".

Não admira que tal conceito encontre tão grande acolhida entre os náufragos da pós-modernidade. O cerne social dessa ideologia é formado de fato não por uma nova "classe operária" assalariada, mas por pseudo-autônomos, pelas vítimas da "terceirização" e novos empresários da miséria nos âmbitos da produção "high tech", das mídias e do processamento de informação, abarcando os acadêmicos e os professores depravados das instituições privatizadas de ensino, que, como "subempresários" intelectuais, precisam pagar por conta própria seu seguro social.

Essa "classe", se se quer chamá-la assim, elaborou seu grandioso fracasso no capitalismo-cassino meramente de forma compensatória, tachando o grande capital financeiro de mentiroso e enganador. Eis a matriz classista de uma crítica pequeno-burguesa do capitalismo; aliás, não isenta de tons anti-semitas. Já tem algo de penoso a maneira como o ser social irrefletido dos pequenos e decadentes produtores de "conhecimento" e informação reaparece aqui como consciência ideológica.

A superação do dinheiro
O conceito de "trabalho imaterial" se sedimentou também no novo utopismo do movimento internacional do software livre. A "autovalorização" dos pequenos produtores pós-modernos de mercadorias é vinculada aqui à idéia de uma "superação do dinheiro", como a que foi virulenta também nas utopias do século 19.

Mas essa crítica do dinheiro não se refere, como em Marx, ao contexto total da reprodução capitalista. Ela se reporta apenas à função mediadora do dinheiro no processo de circulação. Deve se realizar um "dar e tomar" sem a intervenção do dinheiro, enquanto a lógica subjacente do "riqueza abstrata" (Marx) permanece fora do alcance da crítica.

Esse neo-utopismo crê ter encontrado seu eldorado no "trabalho imaterial" da produção de informação. Sobretudo a internet é entendida como o campo central para a realização dessa idéia. Ora, a internet é, sem dúvida nenhuma, uma criação tecnológica que conduz aos limites internos do capitalismo. Revelou-se impossível fazer desse meio de comunicação universal o terreno de uma nova era de acumulação do capital. Justamente por isso fracassou, como se sabe, a "nova economia".

Ou seja, o capitalismo não pode haurir mais-valia real do processamento de informação. Por esse motivo, ele precisa tentar conferir aos produtos imateriais preços na forma de dinheiro por meio de licenças jurídicas formais. É a simulação do lucro na esfera da pura circulação, em total semelhança com os "produtos financeiros" do capital fictício.

O movimento batizado de software livre compreende mal essa contradição imanente do desenvolvimento capitalista ao fazer de conta que já haveria aqui um "território livre", distante do dinheiro. Porém a crítica superficial ao enriquecimento por meio de licenças legais para softwares e outros produtos da "informação" permanece superficial porque não toca nas relações sociais de produção.

Um aspecto secundário da crise em um pequeno setor é frisado unilateralmente, e a questão da emancipação é afunilada logo em seguida. A sociedade deve ser transformada não por um grande movimento contrário às injunções da administração da crise, mas por um "modelo" alternativo tirado da esfera virtual, o qual deveria ser apenas estendido. O software livre deve convalescer o mundo. De novo se trata de inflar em universalidade um pretenso mundo-modelo.

Mas essa utopia fracassa justamente por conta do caráter de fato imaterial dos conteúdos que são transportados via internet. Se o aspecto material do "trabalho abstrato" não pode ser apresentado nos fluxos de informação da internet, então menos ainda os objetos reais do carecimento em sua maior parte.

Não se pode "baixar" nenhum pão, nenhum vinho e nenhuma calça, para não falar de aço laminado ou materiais de construção; e nem sequer um livro, como deve saber qualquer um que tenha tentado ler na tela uma obra literária maior ou imprimi-la em uma enxurrada de papéis. Só por isso não se pode tirar da internet um "modelo" de reprodução social que, determinada materialmente em sua maior parte, se situe além do sistema produtor de mercadorias.
Os neo-utopistas querem se iludir sobre esses limites de sua idéia unilateral e reducionista, declarando que o problema é meramente provisório e pode ser resolvido pelo desenvolvimento tecnológico futuro.

Máquina universal
O engenheiro britânico Adrian Bowyer (Universidade de Bath) quer construir, nesse sentido, uma "máquina universal" que, à diferença dos objetos de computador, reproduza não mais de forma somente virtual mas também material. Essa "máquina "rapid prototyping'" (RepRap) no tamanho de uma geladeira deve replicar-se a si mesma e, além disso, produzir praticamente qualquer outro objeto.

Ela deve funcionar segundo o princípio das máquinas de copiar, como as que são empregadas no design industrial para modelar protótipos. Factualmente, trata-se de impressores que podem produzir objetos tridimensionais a partir de amido de milho, plástico ou ligas que derretem a baixas temperaturas.

Os alucinados da internet esperam que essa "máquina universal" possa produzir tudo após uma "evolução darwinista" de sua auto-replicação, desde câmera digital até pãezinhos. É pintado um futuro em que as pessoas poderão "baixar" comodamente todos os bens imagináveis em geral. Não se trata de uma "máquina de Marx", como se afirma, mas antes de uma máquina de Harry Potter.

Essa idéia grotesca remete ao caráter tecnicista redutor do construto inteiro. Não está em jogo aqui obter relações sociais diferentes e uma outra relação com a natureza que apontem para além do sistema produtor de mercadorias, a fim de dar conta da lógica específica dos diversos âmbitos da vida.

Bem ao contrário, a reprodução social total deve ser subsumida ainda mais sob uma única "lógica funcional". O "trabalho abstrato", com seu alcance destrutivo, negativo e universalista sobre o mundo, não é superado. Ele é prosseguido como figura fantasmagórica de um composto cibernético inteiramente automático.

O herói em questão é o consumidor de mercadorias na qualidade de "verdadeiro ser humano", desembaraçado de todas as condições materiais, o qual reinterpreta seu consumo convertendo-o em produção. Se nas alucinações da esquerda pós-moderna dos anos 90 o consumidor era considerado "dissidente", agora ele deve ser exaltado como "produtor imaterial" dissidente.

Na realidade, a internet é um meio de comunicação de fato universal mas inteiramente restrito à circulação, pressupondo em todos os aspectos a produção feita em outra parte. Mesmo software precisa ser desenvolvido primeiro, antes de poder ser introduzido na circulação midiática.
Se o consumo lúdico de "usuários" pode possibilitar um certo desenvolvimento no caso especial dos programas de computador, o mesmo coletivismo anônimo de produtores consumidores no caso de produtos culturais é uma ilusão. Pois a cultura em sentido amplo não funciona, segundo sua essência, conforme a lógica de "0" e "1". Ela não pode se desenvolver como mera combinação de módulos informacionais.

O déficit dessa idéia se torna particularmente evidente quando o "dar e tomar" sem dinheiro deve ser aplicado, na qualidade de pseudoprodução de software, aos conteúdos artísticos e teóricos. Aliás, menos a expensas dos conglomerados midiáticos do que a expensas do produtores culturais imediatos, que sob condições capitalistas não podem viver sem rendimento monetário. Abstraindo isso, os textos literários e teóricos exigentes só surgem por reflexão e elaboração individual de experiências sociais. A troca com outros e o desenvolvimento não se efetua por "download" e neoconfiguração mecânica.

Se o pensamento emancipador deve consistir justamente em que os indivíduos se entendam apenas como "pontos de contato no intertexto", como se expressa o filósofo alemão Peter Sloterdijk, então a individualidade abstrata do capitalismo não é superada. É somente radicalizada.

"O gesto do downloading", escreve Sloterdijk, significa "libertar-se da injunção de fazer experiência". O filósofo pós-moderno de forma alguma se refere a isso de maneira crítica; para ele esse desenvolvimento deve ser "saudado quase sem restrição". No lugar da idéia marxista de uma "associação de indivíduos livres" aparece em espaço virtual um coletivismo desmaterializado e preso à lógica da circulação. Não é uma resposta à crise social e intelectual do movimento emancipador.

Robert Kurz é sociólogo alemão, autor de "Os Últimos Combates" (Vozes). Escreve regularmente na seção "Autores", do Mais!.
Tradução de Luiz Repa.